A poesia bordada de Manoel de Barros no livro Exercícios de Ser Criança foi o primeiro contato da jovem cantora Joana Garfunkel com a arte da família Matizes Dumont. As imagens da infância poética do escritor, retratadas no livro pelos desenhos de Demóstenes, bordados pela mãe Antônia e irmãs Ângela, Marilu, Martha, Sávia, despertaram em Joana a curiosidade. “O bordado sempre esteve comigo, mas eu queria ver de perto como são de carne e osso”, conta.
Assim como Joana, Caroline Dipe, de 30 anos, apaixonou-se pela ousadia do bordado livre depois de participar das suas primeiras oficinas e do II Encontro do Bordado Brasileiro em Pirapora (MG), realizado em junho deste ano. “Todo mundo na minha família tem um pouco de artista e eu queria puxar essa asinha para mim também, para ver se eu me encontrava”. Caroline confessa que sempre foi tímida, mas a vontade de aprender tirou-a de seu universo quase intocado em Muzambinho, município onde nasceu, na fronteira entre Minas Gerais e São Paulo. “Estar com pessoas de vários lugares nas oficinas, cada uma com sua música foi uma troca tão gostosa. Ver o sotaque de cada um e o jeito que cada um se expressa, abre horizontes, é maravilhoso, enriquecedor”.
Joana e Caroline fazem parte de uma geração que viu as mães e as avós bordarem no ambiente doméstico, mas que decidiram ir além, em busca de um espaço individual de expressão artística. Foram inspiradas – também – pela experiência transgeracional do Grupo Matizes Dumont, cujo bordado vai sendo passado da mãe para as filhas e, depois, para netas. “A gente deveria voltar a praticar muitas das artes que são tradicionais, porque a gente passa muito tempo no computador. Quando se pega linha, pano e se escolhe as cores, é possível meditar, conseguir um pouco de paz nessa rotina tão apressada e difícil que estamos vivendo”, diz Caroline.
“Nosso bordar foi aprendido com a mãe Antônia Zulma, bordadeira clássica, que fazia suas artes entre os afazeres do dia a dia, como tantas outras bordadeiras do seu tempo. Com ela aprendemos a descobrir as luzes, os movimentos, as formas, as cores e matizes da natureza, o que nos permitiu ter um outro olhar sobre a arte de bordar.
Dessa aprendizagem cotidiana e antiga, passamos a fazer caminho outro, singular, escolhendo o movimento e ousadia para criar. Adotamos um pressuposto para nortear nosso bordar: o risco deixa de ser um rígido padrão a seguir. Os traços de Demóstenes são um caminho, desafios a se arriscar – são a nossa base a partir da qual se cria e amplia com linhas e agulhas. O avesso transforma-se em novas possibilidades.
Este é o nosso gesto simples, descontraído e amoroso de um criar que desafia a im
aginação. Algo novo emerge a cada ponto, surpresas a cada reinvenção no espaço vazio – esse campo onde a linha corre solta e descobre emoções. Onde laçadas invisíveis pactuam o encontro entre o processo vivido pelo artista e aquele que contempla a obra” Marilu Dumont.
Foi este o caminho que motivou a paulista Joana, que além de cantora como já contamos, é psicóloga e narradora de textos literários. Estudiosa e grande conhecedora da obra de Guimarães Rosa, ela concilia o trabalho clínico com a carreira artística e o projeto “Canto Livro de Música e Literatura”. Em 2016, lançou seu primeiro CD solo e bordou os flyers dos shows do disco.
Diz que foi atraída pelo bordado Matizes Dumont porque dialoga com a poesia, com a paisagem, com a canção popular, com a memória. “Faz o trabalho ficar gigante”, define. E ela cita como exemplo o resultado do bordado Dumont na região de Brumadinho (MG), local que sofreu com um dos maiores acidentes ambientais que o Brasil já testemunhou. “É um trabalho que ganha outras cores, um bordado a serviço do social, da elaboração, da saúde mental. Me tocou como psicóloga, na minha clínica, nas minhas oficinas”.
A menina Joana, que começou a bordar aos 12 anos de idade, aperfeiçoou seu aprendizado dentro do grupo Teia de Aranha em São Paulo, coletivo que borda poesia e trechos de livros. “Encontrei um lugar, uma casa para habitar, visitar, ficar, curar, conversar consigo mesma e traduzir em um objeto de arte. Esse é o lugar da manualidade na minha vida”.
Joana Garfunkel ressalta o desenvolvimento de uma linguagem artística própria pelo grupo Matizes Dumont. “É uma digital cheia de novas texturas, de muita liberdade criativa, que usa fios malucos. Fui buscar isso e estou testando isso. Meu bordado era mais caretinha e estou conseguindo encontrar mais expressividade, estou adorando”.
Para o Grupo Matizes Dumont o bordado livre “é uma forma não convencional de expressão-poético visual, caminho por onde se busca uma estética própria ao bordar com alma os desafios e os fios para transbordar”. E Marilu Dumont revela em um de seus escritos “ A liberdade de bordar em cima do inesperado nos possibilita desenvolver o que chamamos de bordado livre e espontâneo. Espontâneo em seu resultado, porque não está preso ao risco inicial. O risco inicial é a nossa referência por onde nos a riscamos, por onde redescobrimos novas formas”.
Caroline arremata: “A gente se liberta para encontrar nossa ancestralidade e criar beleza no meio do mundo moderno, porque a gente vai ter que deixar algo para as gerações futuras”.
E precisamos concordar com a jovem bordadeira. Ela nos lembra que os jovens estão em busca do equilíbrio e o bordado pode levar a ele.
Publicado em: 25 de novembro de 2022
Bordados lindos! Gostaria de fazer o curso e aprender a bordar!
Maravilhada com o texto, com a experiência artística e social, aliás com tudo ligado ao Grupo Matizes Dumont!
Muito feliz e grata por participar do grupo!