Alguns caminhos e travessias do bordado

Ainda ontem falamos das mãos e do quanto elas são representativas da essência humana, formando uma tríade poderosa junto com o cérebro e a visão. Hoje quero ampliar a reflexão em torno das travessias e caminhos e do bordado – caminhos esses que se entrecruzam com a própria cultura humana.

Travessias – Bordados Dumont – Foto Marilu Dumont

Travessias – Bordados Dumont – Foto Marilu Dumont

Como disse antes, a criação da primeira agulha de osso deu início a uma ancestralidade de costureiras e bordadeiras. A necessidade prática de costurar vestes deve ter sido o germe desse impulso criativo, mas quando foi que a luz artística começou a permear a técnica? Quando terá sido essa epifania?

Nosso querido amigo, antropólogo e poeta Carlos Brandão diz que a arte brilhou no instante em que alguém sentiu o desejo de personalizar um artefato, de deixar a sua marca pessoal em alguma pele de animal, tenda, cerâmica, parede…será que foi  aí nessa travessia que a ideia de imortalidade começou a brotar em nossos corações? Será aí que principiou a vontade de existir além da existência visível? Terá nascido aí o desejo de contar histórias, de registrar sonhos e acontecidos?

Os caminhos do bordado vêm seguindo a linha da vida, como a fluidez das águas que correm sem pressa.

Canções de terra e água – Bordado Ângela Dumont – Foto Marilu Dumont

Canções de terra e água – Bordado Ângela Dumont – Foto Marilu Dumont

Na Grécia, deusas e mulheres fiavam, teciam e bordavam, contavam histórias, que ecoam até hoje trazendo a ideia da essência humana, vida, morte e imortalidade. Outras povos antigos também usaram o bordado em ritos de passagem. Verdadeiros tesouros representam heranças culturais em todos os continentes. Isso merece um belo ponto de prosa em outro dia.

Chegando ao Brasil por mãos de imigrantes, o bordado ganha cores brasileiras e status de prenda doméstica e assim permaneceu “entre o círculo do bastidor” por longo tempo até ser considerado “arte aplicada”.

Bordado Antônia Zulma Dumont – Foto Marilu Dumont

Bordado Antônia Zulma Dumont – Foto Marilu Dumont

A Semana de Arte Moderna em 1922 impulsionou a modernização das diferentes linguagens da arte e valorizou ofícios como cerâmica, gravuras, bordados, tapeçaria. Esse movimento contribuiu para a libertação dos cânones da arte praticados até então, que seguia conceitos europeus e tirou esses ofícios do rol das artes aplicadas levando-os para a arte brasileira.

Obra Árvore de rio - Coleção: Árvore

Obra Árvore de rio – Coleção: Árvore

Ainda outro dia conversava com um amigo sobre a importância do exercício da liberdade nos ofícios, a autonomia do artista em suas escolhas, emancipação da mulher nas artes. Nessa conversa boa falamos sobre liberdade no usos dos suportes para as criações, o que fortaleceu aos poucos e a cada dia essas práticas. Passaram a ocupar o lugar da arte, presentes em  salões, museus e galerias, como é o caso do bordado.

A ideia de liberdade, brasilidade no bordado contemporâneo.

Por anos e anos bordadeiras brasileiras usavam riscos europeus, onde predominavam estética, cenas e paisagens típicas de além-mar. Sem possibilidade de criar o que bordavam, usavam riscos tão clássicos quanto seus suaves e repetidos bordados.

Vaso de flores bordados

Entre os riscos antigos de nossas mulheres era possível ver desenhos com escrita em japonês, ou lindas crianças com roupas típicas holandesas. As flores eram papoulas e outras nunca vistas antes. Árvores com formatos desconhecidos, assim como montanhas com picos brancos de neve.

Lembro bem das encantadoras lanternas chinesas  e flores de macieira das toalhas de mesa de mamãe.  Nas barras das saias das meninas ela contava histórias como a do “Sabiá na gaiola”,  nas colchas das caminhas tinha sempre histórias, todas vindas lá do outro lado do mundo, crianças eram louras cercadas de papoulas.

Menina bordada

Se usarmos uma passagem de tempo entre o bordar para os filhos e  os enxovais para a chegada dos netos, percebem-se importantes mudanças nos motivos. Os desenhos para o nosso bordado já em 1980 passaram a ficar mais próximos da realidade brasileira por influência de Demóstenes, que já  estudava Artes Plásticas em Belo Horizonte.

Casa de vó – Bordados Dumont Foto Rui Faquini

Casa de vó – Bordados Dumont Foto Rui Faquini

De lá pra cá, tudo fluindo para o bordado livre e espontâneo.

O Grupo Matizes Dumont a partir de então usa o bordado para contar histórias, vivências e percepções de vida brasileira, fazendo dessa arte uma linguagem estética, poética.

Obra: Dança de Roda. Coleção: Coração em paz - Portinari

Obra: Dança de Roda. Coleção: Coração em paz – Portinari

Os tecidos e linhas são garimpados em lojas especializadas, armarinhos, ou em tecelagens nacionais e internacionais, sempre surpreendendo pela textura, leveza ou densidade diferenciadas.

bordado

A conversa aqui vai longe, pois os caminhos do bordado continuam seus percursos, verdadeiros saltos e travessias,  em linguagem que sempre se renova. Afinal, quem disse que criatividade conhece porteira, cancela ou portinhola?

assinatura Marilu Dumont

 

 

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12 Comentários

  1. Antônia Duarte Caixeta Neta

    Muito interessante a trajetória do bordado. Pois vivenciei na minha infância essa face de bordados doméstico e também os enxovais de bebê, embora
    Percebo hoje uma valor maior agregado a arte de bordar.
    Encantada com cada ponto e encanto

    Responder
  2. Marta Mursa

    Obrigada,Marilu, por nos dar o alimento de suas reflexões para esses encontros de bordar sentimentos, cores brasileiras de novos ângulos, laçadas, direções e motivos. Que possamos construir ,cotidianamente, redes e esteios que nos sustentem em verdade, afeto e paz!

    Responder
  3. Leila Maggi

    Vivenciei o bordado desde criança com minha tia e mãe.
    Hoje ela está mais criativo mostrando cotidiano do dia dia.

    Responder
    • Leila Maggi

      Vivencio bordado desde criança com minha mãe e tia.
      Era um bordado mais tradicional.
      Hoje ele representa a realidade do cotidiano da vida.
      E mais realista.

      Responder
  4. Vanessa Camasmie

    Interessante, Marilu, que o bordado livre vem junto da expansão da liberdade feminina. Por que será que as mulheres que bordavam riscos clássicos europeus não tiveram a ideia de bordar um risco autoral? Me parece que isso tem relação com a ideia de que somos autoras de nossas vidas, que a mulher cria sua própria história.
    Um beijo no coração!
    Vanessa Camasmie.

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  5. Ierlete

    Aprecio muitíssimo os seus bordados, acho-os magníficos.

    Responder
  6. Ierlete

    Vocês são maravilhosas.

    Responder
  7. Lucimari

    Encantada com tanta história e filosofia envolvendo as manualidades. “Enxerguei”, enquanto lia, indígenas de diferentes locais no mundo… com sua arte em cerâmica, corporal, tecidos com mais diferentes materiais… quanta sensibilidade em um povo chamado “selvagem”…

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  8. Anna Lúcia

    Muito interessante seus bordados ! As histórias contadas e escritas com linhas nos bordados!
    É maravilhoso! Esplêndido!
    Obrigada e parabéns!

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  9. Jussara Nunes de Moura

    Como sempre ler ,ver e particioar de encontros com voces e confirmar a beleza carinho dedicacao de voces ao bordado.
    Espetacular e oferecer a todos seus saberes com tramas de ternura.Sucesso obrigado

    Responder
    • Graciette Lamas Esposito

      Agradecida pelos ensinamentos, pelas histórias das bordadeiras, pelos encantos de suas palavras e seus bordados!

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  10. Eugênia de Medeiros

    Amo vocês e seus ensinamentos

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