“Somo seres não apenas capazes de se adaptar ao mundo, mas sobretudo de mudá-lo. Seres curiosos, atuantes, falantes, criadores”. (Paulo Freire)
Bordado livre sempre existiu?
Bordados livres importam e viraram notícia, digamos assim, nos últimos anos.. Vou entrar numa polêmica ao afirmar aqui que, de certa forma, o bordado livre sempre existiu. O que houve foi um rompimento explícito com a formalidade do bordado clássico, fazendo surgir, então, uma nova nomenclatura: bordado livre ou, como se diz também, bordado espontâneo.
Se analisarmos essas expressões poderemos ver uma contradição oculta, pois em nossa concepção, um verdadeiro bordar não pode estar preso ou não ter espontaneidade. Pelo menos o bordado que flui do coração.
Quando digo que o bordado livre sempre existiu é nesse sentido. Sempre houve uma bordadeira bordando por fora do trilho… ou do convencional. É da natureza humana inovar e, para isso, alguma ruptura deve acontecer.
Bordar, para nós da família Dumont, é tão natural quanto a liberdade deveria ser para as pessoas. Vemos ligação entre bordado e liberdade como algo indissolúvel, pois fomos iniciadas nessa arte da forma mais livre e natural possível.
Nossa mãe, Antônia Zulma, só nos permitiu aprender a bordar, no sentido técnico da palavra, depois que tínhamos aprendido a andar de bicicleta, a tomar as rédeas do cavalo, a nadar ou escrever as primeiras palavras.
Antes disso, dispúnhamos de rituais de aproximação dessa arte: brincar com as caixas de linhas, arrumá-las de acordo com a harmonia das cores, enfeitar os vestidinhos das bonecas feitas à mão…assim fomos preparadas para cultivar amor pelo bordado, sem pressão e menos ainda consciência dos passos que dávamos, sob o olhar amoroso de nossa sábia matriarca.
Bordado livre, como um estado de espírito.
Os bordados livres importam e só podem ser realmente praticados se existe liberdade interior e entrega na hora de bordar. Pois não se trata de liberdade apenas para fazer o que quiser das linhas e agulhas. Isso também. Mas quando a prosa envolve arte, é preciso mais! A gente vara a noite, entra pelo dia e nada de ponto final.
Bordar livremente tem a ver com fazer do jeito que quiser, mas não de qualquer jeito. Tem que ir costurando, lá dentrinho, uma vaga certeza de onde se quer chegar.
O sentido de bordar é tão forte para nós e vive tão impregnado na menor de nossas células que ouso fazer essa comparação com a liberdade – esse valor tão essencial à humanidade. Como todo sentido segue uma direção, essa rebeldia não aconteceu de de repente nem de rompante
Como a natureza que muda aos pouquinhos, um dia lá decidimos construir um eixo, que batizamos de linha da imaginação solta. Esse foi o ponto de virada que marcou nosso pioneirismo na praia de bordado livre. Como diz Paulo Freire, viemos para o mundo sobretudo para mudá-lo.
Mamãe sempre foi orgulhosa do bordado clássico, e embora dentro de nós algo fervilhasse no rebuliço da inovação, nós nos rebelamos de fato a partir do livro Menino do Rio Doce, em 1996, obra que marca bem o nosso bordado livre.
Sensibilidade e espiritualidade como experiências de liberdade.
O compromisso com essa liberdade de bordar livremente é tão parte do que somos hoje como pessoas que criamos uma espécie de mantra. Toda vez que começamos um projeto de bordado novo dizemos, alegremente em alto e bom som: “que a linha da imaginação solta nos guie!”.
É assim que escolhemos, há quase 40 anos, buscar novos movimentos para sair do formal, inflamar cores para a liberdade, fazendo da imaginação solta o eixo de nosso bordar, tecendo o nosso próprio padrão. Sendo rebeldes com causa. Procurando ir além do lugar decorativo que o bordado convencional ocupava, buscando sensibilidade e espiritualidade como experiências de liberdade.
O entrelaçamento entre a imaginação e a leitura da realidade, a observação da luz e sombra, do grafismo da natureza, os meios tons dessa grande professora que é a vida, deu formato à marca Matizes Dumont.
Hoje temos uma estética poético-visual própria, onde o direito e avesso se harmonizam em inusitados desenhos, surpreendem o preconceito e desarmam a formalidade. Essa arquitetura espontânea com linhas, tecidos e agulhas não tem referência na linguagem convencional e contribui para atualizar a arte milenar do bordado.
Uma coisa importante a dizer sobre espontaneidade no bordado é o desapego em relação ao resultado.
Bordar com um padrão de liberdade implica em correr o risco de manter-se livre do risco inicial e, a partir dele, criar outros desenhos. Esse compromisso com a liberdade requer segurança para suportar a leveza. Dia a dia experimentando um bordar para fluir levou-nos a criar a técnica livre do “bordado a fio solto e malabares” trazido à tona por Ângela Dumont.
Essa técnica nasceu da mistura incessante de tecidos, pontos e texturas com a variedade de fios, desde a mais pura seda ao rústico algodão e à lã que aquece delicadas almas. Técnica, liberdade e memória se reúnem em cada laçada que se aventura nos espaços vazios, onde a linha corre solta e descobre emoções.
Espaços onde o processo vivido pelo artista e aquele que contempla a obra se encontram no assombro da beleza.
No diálogo entre bordado e liberdade, é necessário sermos envolvidos pela busca que não aceita amarras, e não apenas preencher espaços.
O bordado livre e contemporâneo está dentro de nós, da nossa disposição para a jovialidade, alegria, curiosidade.
O bordado ilumina a existência e os cantinhos do corpo e da alma. Bordar é significante. Bordados livres importam!
Revisado em 25/7/2023
Brasília, 15/4/21
Os bordados do grupo Matizes Dumont, são encantadores.
Me faz querer fazer igual, ou mais próximo possível, mas estou longe ainda.
Parabéns a todos.