Caminhos pelo mundo das cores

O tempo vivido e cores por onde andei.

A experiência da cor no cotidiano

Encontrar o equilíbrio entre as cores é uma busca incessante de todos que trabalham com alguma manualidade ou projetos cheios de cores. Nesse sentido é fundamental compreender que o processo de harmonização das cores no percurso desses trabalhos, inclusive do bordado livre, passa necessariamente pela experiência da cor no cotidiano. Passa pelo seu olhar com sensibilidade no tempo, no vivido.

Ainda criança fui desafiada a entender o bordado que a natureza oferece com suas transparências, suas formas e cores suavizadas em sombras que brincam com a luz. Meu olhar aprendeu a percorrer e sentir desde então um cenário cheio de sons, tons em tantos matizes quanto o universo poderia me presentear. Acredito que tudo isto moldou minha paisagem interna e ajudou-me a criar minha própria harmonia das cores.

Harmonização de cores no bordado e suas particularidades.

Diferente da pintura, em que o artista tem liberdade parar brincar misturando as cores para criar derivações, no caso do bordado a matéria-prima do artista está nos fios e linhas que têm sua cor pré-definida, imutável. Cabe à bordadeira fazer suas
descobertas e construir a partir delas as suas harmonias. Por isso é preciso acolher a natureza, professora nossa que está sempre disponível, ao redor.

Um conjunto de cores é dito harmonioso quando o olhar percorre e traz a experiência de algo bom e belo de se ver. As cores estão em harmonia quando conversam entre si, provocando movimento de emoções. Quando nos comovem.

A arte de observar: aprendizado do tempo vivido

Ao longo de cada fase do meu tempo e agora na maturidade, sigo a reencantar outras formas e cores. Com olhar acolhedor à minha volta, procuro enxergar desde o quase invisível que habita entre o real e a fantasia, ao indizível mundo das cores.

Aquela menina que catava pequenos toás no fundo do córrego para colorir as pedras da porta de casa cresceu e saiu pra aventurar-se no mundo. Hoje, depois de tantas andanças posso afirmar pra vocês que o meu olhar curioso ainda se surpreende com as cores da vida.

Ao longo da minha caminhada aprendi muito sobre a harmonização de cores pela simples observação das terras onde passei e vivi.

Numa manhã, que seria um marco na nossa infância, mudamos num lindo barco a vapor de Pirapora para a Fazenda Água Branca, que a gente preferia chamar de Boqueirão. Essa mudança tingiu com outras belezas as cores da minha vida e de meus irmãos. A chegada ao porto na madrugada estrelada alinhavou um novo mundo para nós.

Dessa época, lembro bem as cores das pedrinhas do fundo d’água e as nervuras em diferentes camadas de marrons, nos barrancos do córrego Jenipapeiro, pertinho de casa. Lembro do sol fazendo sombra na serra da Santa Terezinha e da cor de mel dos pelos da onça pintada. Inesquecíveis e presentes em minhas cores as intensas misturas dos azuis e verdes em transparências, feitas de águas da Vereda do Galhão ou seria do Riacho da Porta? Os pingos d´água enternecem meus dias.

De lá, retornei a Pirapora, onde na leitura das águas li com outros olhos o azul esverdeado e o marrom das cheias: cores do rio São Francisco! As correntezas são espelhos em verde água e sugerem todo o movimento das imagens e cores quando
bordo. Já o rio cheio transborda em tons de terra e garantem piabas e peixes que um dia saltam na cachoeira em explosão da piracema e em alegria nos meus bordados.

De lá, retornei a Pirapora, onde na leitura das águas li com outros olhos o azul esverdeado e o marrom das cheias: cores do rio São Francisco! As correntezas são espelhos em verde água e sugerem todo o movimento das imagens e cores quando
bordo. Já o rio cheio transborda em tons de terra e garantem piabas e peixes que um dia saltam na cachoeira em explosão da piracema e em alegria nos meus bordados.

O dourado do melado de cana e do sol da tarde no pátio da fazenda Mangueira ficaram marcados para sempre nas minhas mãos em busca do bordado livre. Sinto enorme energia com os tons entre caramelados e dourados que brincam de esconder, por entre as folhas azuladas do licuri, no fundo do quintal da casa.

Aos vinte e cinco anos, já com algumas “braçadas de rio”, peguei o trem de ferro para Belo Horizonte. A viagem descortinava paisagens estonteantes, como se fosse a primeira vez. Eu que já tinha ido a Belo Horizonte, daquela vez, ao chegar na estação, surpreendi-me com os cinzas do concreto, e o branco discreto e imponente do edifício Acaiaca. Aos poucos, fui acostumando com a luz nova do lugar – afinal, era uma mudança e tanto! Como ribeirinha, procurei logo minha principal referência: cadê o rio daqui? No caminho da nova casa, vi o ribeirão Arrudas e o córrego do Leitão, que naquela época ainda refletiam o azul do céu. Por anos e anos fui acompanhando suas águas se turvarem até serem encaixotadas.

E da vida nova que começava, tenho lembranças da efervescência cultural e do alumbramento com os tons dos longes azulados das montanhas e do sol fazendo garatujas nos telhados dos casarões que inundaram meu olhar. Eu andava pelas
ruas devagar, descobria belezas nas fachadas e platibandas com desenhos e cores marcadas com as extraordinárias marcas do tempo.

Minha alma se fartava nas delicadas manhãs de abril, que na capital da minha terra são emolduradas pelos verde-azuis da Serra do Curral que a noite fica salpicada de estrelas.

Com elas, bordo ainda o desafio dos longes azulados. Foi época de muito aprendizado sobre cores, linhas e letras do bordado da vida.

Novos amigos fizeram-me descobrir as incríveis cores de minerais, e vi, pela primeira vez, amostras e gemas com formas e coloridos da natureza.

Do Belo Horizonte da minha vida fui direto para Salvador. Meu tempo na Bahia tem cores entre laranja e verdes do meu antigo jardim, tons em mostarda quase ocre do óleo de dendê, azulências do mar de Itapuã, tons da pele do povo baiano. A Bahia me tem até hoje – mesmo depois de tanto tempo!

Acostumada a navegar pelos rios de minha terra, desta vez a rosa dos ventos me direcionou para atravessar oceano e chegar a Nottingham, bem às margens do rio Trent, no centro da Inglaterra. Lugar de surpreendente beleza: construções
medievais, castelos e parques, com álamos e outros tipos de árvores que até então eu não conhecia. A passarinhada que “gorjeia” por lá tem outras cores e cantos, igualmente lindos. A cidade recriou na minha mente a atmosfera medieval e me
presenteou com tons outonais e experiência com outras gentes. Meu tempo em Nottingham tem tons de cobre que se harmonizam com o cinza típico do céu da Grã-Bretanha.

Voltei para Brasília num dia chuvoso de setembro. Lavei a alma com alegria da chuva forte daqui. No dia seguinte, abriu o sol e o azul do céu que fazia brincadeiras em policromia nas nuvens. O céu daqui de Brasília é cheio de surpresas coloridas, vai
do branco ao rosado misturando escalas de amarelos, toma emprestado o laranja e o vermelho pra tingir de coral o pôr do sol em arrebatadoras combinações. Ligeiras, as mudanças de cores são bordadas sobre os azuis aqui onde vivo. Tanto a luz da aurora quanto do entardecer vão sendo rebordadas ao longo das horas e dos dias.

Refletindo as paletas de cores do meu caminho feito de terra, fogo, ar e águas

Surpresas dançam até hoje entre verde e branco das correntezas, com o brilho da lua nas folhas, com os dourados e prateados dos peixes, ou toma sol nas asas do assanhaço azul.

Paletas de cores que variam a partir das referências do meu universo rural do cerrado mineiro, dos verdes azulados das águas do rio São Francisco, aos azuis acinzentados e enigmáticos das montanhas, ao dourado das areias da Bahia, ou a policromia do céu de Brasília. Maravilhas em um novo caleidoscópio.

Observação a partir dos quatro elementos da natureza

Aprendi com os elementos da natureza as intensidades dos tons, as brincadeiras de luz e sombra. A chama das fogueiras tem um encanto rubro-laranja, pontilhado de amarelo, e os azuis fazem o contorno. Maravilhosas combinações!

E o céu de Brasília? Ele ensina e compartilha os azuis e violetas aproximando-se no entardecer com lua nova. Por aqui o vento passa ligeiro entre as penas dos canarinhos e dos bem-te-vis, ensinando a leveza das pontinhas das asas.

As cores do chão, da terra sempre me atraíram em sua magistral variedade de tons que vão do marrom quase preto, passando pelos mais claros até os amarelados do ocre. Quantas estradas de chão passei com faixas de diferentes cor de solo são tantas quanto pude olhar.

Registre tudo e brinque com o que você vê

Depois de passear pelas cores no seu dia a dia e observá-las nos quatro elementos, aceite e encare os des(a)fios ao buscar as suas referências na natureza. Experimente registrar com fotos, brinque com desenhos e palavras sobre tudo aquilo que
encontrar e cativar seu encantamento. Vai ajudar a aguçar os sentidos e levar você ao encontro da sua harmonia das cores.

Durante toda a minha vida fiz registros do que me encantava – pequenas anotações que transformei em um livro: “Harmonia das cores nos fios do bordado – Alquimias na vida de uma bordadeira”.

O tempo vivido bordou-me em policromia, e foram muitas as cores que andaram e ainda andam em mim.

A minha existência é bordada e rebordada com essas cores, formas e grafismos da natureza por onde a vida anda em alegrias e segue caminhos indicados por uma Rosa dos Ventos plantada bem no fundo do meu olhar.

Obra: Mulher e seu jardim Coleção: Mulheres – Sagrado Feminino

 

E como disse Mia Couto “Não é o voarmos sobre os lugares que marca a memória. É o quanto esses lugares continuarão voando dentro de nós”.

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