P.S.: Esse artigo ganha ainda mais beleza quando lido no computador — vale a pena ver cada detalhe com calma.
Primeiros pontos: quando o bordado encontrou o rosto
Os pontos são como letras de uma caligrafia sensível. Cada um tem seu ritmo, sua personalidade, sua maneira de contar histórias. Por isso o bordado de cada figura humana é tão singular.
Há ponto que sabe esperar, é traço que sustenta, outro é puro movimento, abre caminhos.
Tem aquele que inventa texturas, outros intensos. Ao bordar a figura humanas recorremos a tantos deles só pra deixar a imagem cheia de vida.
Lembro bem do meu primeiro bordado com figuras humanas — embora, na época, eu nem soubesse que estava fazendo algo “importante”.
Como toda menina filha de bordadeira, aprendi a bordar minhas garatujas com linha e agulha por volta dos 7 anos.
Lembro-me de um bordadinho com meu desenho infantil -quase um autorretrato afetivo.
Representava minha irmã, meu irmão e eu— bordados com pontos retos e alinhavos, e uma emoção que mal cabia no pano.
A simbologia já estava lá, mesmo sem nome.
Uma conquista com pontos retos e alinhavos da criança que ainda mora em mim – capaz de travessuras com linhas e agulhas percorrendo o pano.

Recorte da obra “Mãe e filha”. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra completa.
Lembro bem de mamãe falando que os cabelos das damas e cavalheiros eram importantes na definição dos personagens de uma “côrte” que nem se sabia onde ficava.
As vestimentas sempre brancos ricamente bordadas em matiz com perfilado mostarda para lembrar os dourados da realeza.
Mas o que me atraía mesmo eram as figuras infantis cercadas de mistérios – quem seriam os pequenos holandeses numa gangorra, com carinha boa?
Que meninas eram aquelas com tranças da cor do melado de cana ao lado de um moinho de vento e um chão de tulipas?
Tinha ainda os meninos mexicanos com xales coloridos no ombro.
Todos muito atraentes, comoviam a menina curiosa que entendia somente da geografia do chão do cerrado
Sem perceber, fui aprendendo com minha mãe a bordar cabelos e rostos.
A dar expressão. A perceber que o que eu bordava não era exatamente um rosto — era uma intenção, um afeto.

Recorte da obra “Mãe e filha”. Grupo Matizes Dumont.Clique Aqui para ver a obra completa.
Foi nessa época que figuras humanas passaram a ter um valor simbólico pra mim.
Ali nasceu, silenciosa, a ideia de que bordar gente era também bordar sentimentos.
Bordar figuras humanas muda tudo no seu bordado
Por anos, bordei figuras humanas sem questionar. Até o dia em que percebi que elas não estavam ali para “enfeitar”, mas para dizer.
Quando passei a bordar pessoas contextualizadas na realidade brasileira – reais, inventados ou simbólicos – meu trabalho ganhou profundidade.
Comecei a observar mais de perto o que nascia das minhas mãos.
Aí percebi que a figura humana não estava ali só para “decorar” — elas estavam ali para dizer.
O bordado deixou de ser apenas belo: tornou-se narrativa. Criou vínculos: com quem olha, com minhas próprias memórias.
Revelou o invisível: partes de mim que ainda não sabia nomear com palavras. Foi assim comigo.
Embora tenha começado a bordar de forma simbólica desde o início, houve um ponto de virada importante: a decisão de bordar temas e imagens brasileiras.
Meus irmãos do Grupo Matizes Dumont e eu deixamos de lado o bordado clássico como única referência.
As figuras humanas que eu bordava passaram a refletir as pessoas ao meu redor, os rostos que eu via, as histórias que me atravessavam.

Recorte da obra “Dança de Roda”. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra completa.
E quando você borda alguém — real, inventado ou simbólico — algo muda no seu bordado. Ele deixa de ser apenas bonito. Passa a ser algo com profundidade e afeto.
Passa a contar uma história. Ou muitas.
Passa a criar vínculo com quem olha. A abrir espaço para a memória, a imaginação e a identidade.
Passa, principalmente, a revelar partes suas que talvez você mesma ainda não tinha bordado — nem com linha, nem com palavras.
Descoberta simbólica: a figura como existência e memória
Com o tempo, entendi que bordar uma figura humana é mais que representar alguém com fidelidade, mas sobre permitir que aquela figura carregue intenções, emoções, e até aquilo que não conseguimos nomear.
Essa vivência construiu minha relação com o simbólico.
Ao aprender a bordar cachos usando pontos que se espiralavam em arabescos, compreendi que cabelos poderiam ser mapas afetivos.
Descobri que as curvas de um cabelo era também memórias do penteado que as mãos de mamãe bordavam cuidados em meus cabelos e da minha irmã antes da escola.
Os rostos que eu criava não buscavam realismo: olhos amendoados em azul-violeta dos olhos de meu avô falavam de ancestralidade imaginada.
Bocas entreabertas em vermelho-coral lembrando o sorriso da figura mitológica da sereia – a nossa mãe d´água numa ilha do meu rio.

Recorte da obra “Pachamama”. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra completa.
O gesto como tradução de mundos internos
No bordado livre, as figuras humanas são mais que representação fiel: elas são convite à linguagem simbólica, à invenção e ao encontro da existência.
Quando bordamos uma figura desenhamos um corpo ou um rosto eles traduzem intenções, emoções e lembranças em cada ponto.
Seja no fio escolhido, ou traço bordado narramos sentidos.
Bordar uma figura humana pode ser um gesto de conexão — com alguém que amamos, com um momento especial ou com aspectos nossos ainda sem nome.
É um caminho para expressar o que muitas pode ser escrito de forma diferente.
Pontos podem ser convites para lembrar, sentir, homenagear.
Ao bordar, não apenas contornamos corpos — bordamos ausências, desejos, vínculos profundos.
E quando percebemos, o que era figura virou símbolo. O bordado virou linguagem.
Bordar uma figura humana é bordar a existência – sua, do outro, ou de algo que ainda pulsa em silêncio dentro da gente.
É nesse gesto de bordar o outro — real ou inventado — que começamos, sem perceber, a bordar a nós mesmas.
Um rosto bordado tem sempre um sentido: carrega uma escolha, um olhar, uma memória.
Os fios que usamos, o jeito como desenhamos o cabelo ou vestimos aquela figura, tudo isso fala de quem somos.
A figura humana, quando bordada livremente, pode se tornar algo capaz de ser sua assinatura.
Um elemento estético, sim — mas também simbólico, afetivo, autoral.
Mesmo quando parece imperfeita, a figura bordada carrega autenticidade.

Recorte da obra “Mulher e seu Jardim”. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra completa.
Ela não apenas decora: ela conta. Cada ponto é uma escolha estética que reflete uma intenção, uma emoção, uma ideia.
Ao bordarmos partes da nossa própria identidade, damos forma ao invisível.
A figura bordada passa a ser linguagem própria, onde cada linha é tanto herança quanto invenção.
E nisso, o bordado vira, gesto e palavra.
“Mulher que Borda Águas”: uma biografia de linhas

Obra “Mulher que Borda Águas”. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra.
Um exemplo que carrega tudo isso é a obra “Mulher que Borda Águas”.
Quando comecei a bordá-la, sabia que queria que aquele rosto dissesse algo sobre a brasilidade que carrego.
A mulher bordada ali tem raízes negras e indígenas — e isso aparece nas escolhas que fiz: uma boca carnuda, como a das mulheres negras da minha infância, e grafismos inspirados nos povos originários cobrindo sua pele.
Ela não veio de uma imagem pronta. Veio de uma técnica livre: pontos soltos, formas irregulares — não para copiar o real, mas para sugerir e conectar com o meu Ser.
Como se estivesse se materializando no ar. Pontos soltos, formas irregulares, traços sugeridos — como se o bordado estivesse mais interessado em sugerir um respirar do que em obedecer ao real.
Essa figura representa muitas coisas: minha ancestralidade, minha busca por identidade, minha relação com o feminino e com a terra.

Detalhe da Obra “Mulher que Borda Águas”. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra completa.
E se não ficar perfeito? O que conta é o que aparece nas entrelinhas
E a imperfeição? Essencial. Linhas tortas, pontos soltos — são eles que tornam a figura autêntica, porque carregam a marca do humano.
Muita gente me diz: “Marilu, eu queria tanto bordar figuras, mas não sei desenhar.”
E eu sempre respondo a mesma coisa: você não precisa saber desenhar — precisa apenas permitir-se expressar.

Obra Amores e Flores. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra.
Uma linha tremida pode ser um sopro de vida. Um rosto desproporcional carrega mais alma que um retrato fiel.
O que importa não é a forma, mas o que pulsa entre os fios.
Se a linha escapa, se o ponto entorta, se o traço não fica igual ao da imagem original — está tudo bem.
O bordado não é um teste de perfeição. Ele é uma travessia simbólica.
Um espaço entre o que se lembra e o que se deseja. Entre o que é visto e o que se sente.

Recorte da obra “Danças da Vida”. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra.
Alinhavando temporalidades
Se você sente o chamado de bordar figuras, aceite.
Não precisa começar com o rosto completo. Comece por uma sensação.
Borde o gesto de alguém que você ama. Pode ser o jeito de sentar. O balanço de uma trança. A mão segurando uma xícara.
Esses detalhes, quando bordados com afeto, têm uma força simbólica que nenhuma técnica domina por completo.
E lembre-se: a figura humana no bordado não precisa ser completa para ser poderosa — basta que ela insinue o respirar, o existir.
Você pode bordar existência. Pode bordar ausências. Pode bordar quem você é — ou quem ainda está se tornando.

Recorte da obra “Fiandeira”. Grupo Matizes Dumont. Clique Aqui para ver a obra.
Esse caminho não precisa ser solitário. Estamos criando espaços para isso.
Oficinas, encontros, conversas com outras mulheres que, como você, também querem transformar linhas em linguagem.
Dê esse primeiro ponto. O resto, você vai bordando com o tempo, e o tempo borda em você.
Brasília, 23 de Abril de 2025 às 17h.
Que maravilhosos são seus bordados e poético é seu texto. Adorei!!!