(A)bordando a psiquê
Hoje quero alinhavar uma prosa sobre a prática do bordado ao longo da minha vida e como ele se revela um caminho para a saúde mental. Vivemos um tempo em que muitas pessoas se deparam com as perdas e com o luto. E a(o)s psicóloga(o)s abrem espaço entre o trauma e a tristeza das perdas para apoiá-los, e “prevenir o desenvolvimento de quadros patológicos de lutos mal resolvidos”, como diz André Monteiro. Atualmente, psicóloga(o)s têm aumentado sua carga de trabalho e talvez estejam até sem tempo para o autocuidado. Por isso trago, aqui, a arte do bordado como uma possibilidade real de cura e promoção de saúde em sua dimensão subjetiva.
Minha formação em Psicologia foi bordada com o interesse que tenho pelo universo inconsciente e misterioso da psiquê humana. Desde cedo fui atraída pelo mundo extraordinário e único que respira dentro de nós. Um mundo que oscila entre o vivido e o sonhado. Observava tudo e procurava enxergar o intangível, o não dito, o não revelado.
O alpendre da casa onde nascemos, em Pirapora (MG), era espaço de convivência de muitas bordadeiras. Nesses encontros, mamãe e cada uma delas traziam não apenas sua caixa de novelos, panos e agulhas, mas compareciam acima de tudo com suas presenças carregadas com os seus vividos.
As emoções variavam de intensidade e calor de acordo com os assuntos que embalavam as tardes. Imagino quantas rodas de bordado semelhantes a essas do alpendre lá de casa aconteceram ao longo da história do bordado brasileiro.
Fui crescendo e deixando a infância para trás, mas não abri mão da criança que ainda dança feliz dentro de mim e salta de alegria ao descobrir novidades. O olhar maduro me fez perceber e analisar com mais profundidade as vivências na casa de Pirapora.
Entendi como a arte pode ser um caminho de beleza e superação para a promoção de saúde.
Me dei conta de que o bordado tinha o poder de revelar, interagir e transbordar o aparato emocional das pessoas. Essa compreensão foi decisiva na hora de decidir estudar Psicologia.
Hoje, o reconhecimento de que a arte promove saúde passou a ser oficial com as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS). A arteterapia, do ponto de vista da saúde institucional no Sistema Único de Saúde (SUS), é definida como um dos “recursos terapêuticos que buscam a prevenção de doenças e a recuperação da saúde, com ênfase na escuta acolhedora, no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente e a sociedade”.
Foi uma conquista fundamentada em fatos comprovados, como requer o rigor científico. Tais práticas podem estar presentes em todos os pontos da Rede de Atenção à Saúde, e todas elas têm uma visão ampliada do processo saúde-doença, do cuidado humano e, em especial, do autocuidado. O indivíduo é considerado um sistema complexo que deve ser visto em seus vários aspectos: físico, psíquico, emocional e social.
Uma vivência psicopedagógica que marca a atuação pioneira do Grupo Matizes Dumont
A memória do efeito terapêutico da alegria nas bordadeiras de Pirapora ficou sendo um pano de fundo durante o aprendizado formal e acadêmico da Psicologia. Algo como fios antigos, soltos e desconexos, que aos poucos se organizaram em formas com sentido e com beleza. A teoria respaldando a prática. Uma inspiração de muitos insights.
No fim dos pontos, ou de ponto em ponto, compreendi que essa abordagem ampliada do ser sempre permeou nossas oficinas de bordado. Até o dia em que consagramos esse método, com o nome de (A) Bordar o Ser – uma vivência psicopedagógica que marca a atuação pioneira do Grupo Matizes Dumont.
As rodas de bordado – ou bordando em roda que realizamos promovem escuta acolhedora, vínculo e integração – palavras-chave em qualquer processo terapêutico.
Essa vivência, que utiliza o bordado como linguagem, como expressão artística, provoca um efeito libertador e também regulador – nos leva a relacionar com a vida, com o vivido daquela pessoa. No início do mês de abril, participei de uma live na TV PSI, com o psicólogo André Monteiro. Quando eu contei que muitas participantes das oficinas de bordado relataram melhoras significativas no quadro de síndrome de pânico, ele disse o seguinte: “(…) trazer o medo para o espaço controlado do bordado proporciona uma autorregulação emocional, uma contenção maior”. Assino embaixo!
Bordado como narrativa e expressão do Ser
O bordado livre ou espontâneo, quando conectado a um processo terapêutico, transforma-se num procedimento dialógico que pode atuar como autoconhecimento e desenvolvimento humano. Portanto, bordar não é só o exercício de uma prenda doméstica – é narrativa, é expressão do Ser. É linguagem poética estética visual que promove saúde na medida em que abre espaço para ‘estar consigo mesmo’ e, quando se borda junto, para estar com os outros.
A convivência fortalece nosso poder pessoal e, nas rodas de bordado, todos se sentem acolhida(o)s na sua singularidade como indivíduo. Enquanto se borda temos consciência de uma grande preciosidade da vida – o tempo! Temos o tempo de conversar sobre nossas dores e descobrir que, mesmo sendo muitas delas comuns a todos, cada um tem a sua particularidade, tem seu próprio tempo de superação. Essas trocas, tão valiosas e curativas, são abordagens dos seres humanos que ainda estamos aprendendo a ser.
A tecnologia tem e merece seu lugar de honra na escala de conquistas humanas, ainda mais hoje, com o distanciamento social. Mas seu avanço trouxe uma consequência inevitável, que foi a supervalorização do intelecto, levando as artes manuais para um lugar menor. O reencontro com a manualidade que o bordado propicia é um resgate do prazer que sentimos quando realizamos algo com as próprias mãos. Sentir-se um ser criativo é tão saudável quanto é doentio se sentir incapaz de criar. A alegria que o bordado livre traz é uma alegria de corpo todo. Isso porque a gente borda com todo o corpo, trabalhando a centralidade, com a atenção e com a memória.
Pra fechar essa prosa, lembro de uma oficina que minha irmã Martha Dumont realizou com crianças numa escola. No final, uma delas pediu que Martha ensinasse sua mãe a bordar, para que ela parasse de gritar com os filhos. O ato de bordar tocou essa criança por inteiro. Por isso nós, que acreditamos na arte como caminho, levantamos essa bandeira: o bordado acalma, acolhe, inspira, organiza, liberta e transborda! Um movimento pessoal de promoção da arte e da promoção da saúde.
Por isso BORDADOS LIVRES IMPORTAM!
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