Cerrado, a cor e o tempo vivido
O cerrado tece e borda em fios d’água a teia hídrica para nos dar o de beber. É cenário da vida minha e as suas árvores tortas são o símbolo do que não é convencional. A cor e o tempo vivido banharam-me o coração, esboçaram luzes nas entranhas e decerto que cerziram as asas da minha imaginação. Teria sido esse o meu primeiro bordado livre?
Daquelas noites sobre o cerrado em Pirapora nunca me esqueço: a Via Láctea escandalosa sobre o céu refletido no rio São Francisco, as estrelas como que penduradas no pé de jatobá ou luar sobre ipê rosa – até hoje estão por lá e nas minhas lembranças.
Na minha terra o cerrado se enfeita de noites e dias claros, borbulha entre raízes as nascentes de tantos rios. Onde as árvores trocam de roupa (a)gosto do tempo e enfeitam os espaços entre céu com vagalumes. Cerrado “Pai das Águas” a quem rendemos nossa homenagem hoje e sempre: todo dia é dia de cerrado, de ser/tão.
Essa atração pela beleza rara do não convencional, a curiosidade pelo que é torto, esquisito, audacioso e informal foi enovelando-se livremente em mim, no convívio com a natureza rugosa das coisas, da natureza da seda das coisas.
Sem cerimônia, vou continuar deixando-me guiar pelo cerrado e o bordado livre
Sem cerimônia, vou continuar deixando-me guiar pelo cerrado. Pois é sem cerimônia que o cerrado, em sua incomum beleza e simplicidade, atraiu, desde bem cedo, minha atenção de criança morando no interior das Gerais.
Árvores, cores e formas do cerrado são minhas verdadeiras inspirações para um bordado livre de preconceitos. Desenhos insólitos de folhas, flores e delicados capins balançando ao vento leve formam extraordinários desenhos no chão, na imaginação, e se transformam em nova tela bordada.
Flores têm formatos exóticos como a delicada flor de cigana (a Caliandra), a flor do pequi com seus pontos retos, o intenso amarelo do ipê, os rosados da caraíba preta que nos encanta com suas flores peroladas. E ainda os lilases do jacarandazinho do cerrado, o intenso rosado da cega-facão.
Cuidando do Tesouro do Cerrado
Que estranho mato é este, cujas raízes escondidas na terra são maiores do que as modestas copas com galhos torcidos e que inunda a cena com a transitoriedade das flores? Que mato é este que carece tanto de cuidado, carinho e respeitoe, onde os elementos da natureza deveriam estar em equilíbrio sempre?
Pés de serra, beiras de rios, veredas, várzeas ou capão de mato são segredos a se descobrir entre árvores, palmeiras e arbustos na vida e nos bordados. Neles, fios de cipós, folhas cerzidas pelo tempo ou recortadas pela lagarta-pintada de olhos cheios de cores. Nas tramas do tecido tempo, a linha de seda ou algodão borda, secretamente, o admirável grafismo das árvores, das suas cascas, das sementes e de suas cores.
No cerrado, uma tela vanguardista nos surpreende nas curvas das estradas ou no olhar enviesado, vesgo, torto de tanta beleza. Por isto tudo sou grata ao cerrado, pela contribuição na minha vida e na arte de bordar do Matizes Dumont. Grata pela vida que transborda no cerrado.
E cadê a água, que tava aqui? cadê a terra onde brotam as águas, onde o fogo é somente para despertar as sementes, e o ar brinca de esconde-esconde com os seres?
Este estranho e belo mato é o CERRADO! Nele vivo e reinvento o bordado livre neo contemporâneo a cada dia. Há que se cuidar dele.
Marilu Dumont
Revisitando trechos do livro Harmonia das Cores nos Fios do Bordado – Alquimias na vida de uma bordadeira. Editora Matizes Dumont/ICAD
Brasília, 16 de setembro de 2023
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